Saltar para o conteúdo

Se eu não cantar agora,

21/03/2021

as paredes desmoronam (me enterram).

Se eu não despejar agora mesmo a minha voz terrível (bisonha), as horas me arrastam de volta para onde eu nunca estive.

É preciso, é preciso subir o tom, erguer o queixo fingindo atrevimento.

É urgente ser patético!

Antes que o dia volte a ser raso, antes que eu volte a ser breve.

O rádio velho ligado,

07/02/2021

chiando em algum outro cômodo. O cheiro de assado prenunciando o almoço, e o cheiro indefinível de domingo. As janelas da vizinhança todas abertas com as cortinas revoltas, numa conversa amistosa com a minha janela. A rua de férias. Os bem-te-vis, sempre os bem-te-vis, arrepiando as asas nos fios de telefone, denunciando códigos secretos que eu nunca vou entender. Os olhos preguiçosos, saturados de tanta novidade. As pálpebras por um instante cerradas para evocar rostos amigos, antigos e novos. A vontade de escrever um poema em francês para te alcançar, mesmo a gente não sabendo nem uma palavra em francês, mesmo sendo tão patéticos, por serem tão raros, meus arroubos sentimentais. A mais completa e notável ausência de qualquer necessidade existencial, de qualquer expectativa de tormenta, de qualquer sonho brilhante com o peso do mundo inteiro concentrado. A vida trivial, sincera, experimentada em toda a língua e não nas pontas dos dedos.

Vestia amarelo-limão,

31/01/2021

tinha cheiro de hortelã e trapaceava com um sorriso de veranico estampado no rosto.

Christina tem um cigarro imaginário brincando entre os dedos,

24/01/2021

enquanto a outra anda pela casa acendendo luzes.

Christina está sentada à Monalisa, vestindo as primeiras sombras da manhã. A outra se distrai alimentando medos bem criados.

Christina esgota todas as dúvidas e desvarios num rockabilly furioso no meio da sala. A outra estremece no quarto com uma pressão surda nos ouvidos, a explosão que não vem.

Christina é dissonante. A outra é intangível.

Christina enxerga a outra por um instante no espelho e mostra a língua, depois foge. A outra fica, e espera.

Qual é o traço que me define,

17/01/2021
by

agora, quando fico sozinha diante de mim, sem espelho nem truque? Em que eu me sustento, quando tudo em mim silencia? O que é que a chuva me diz, hoje, quando vem lavar os telhados debaixo da minha janela e desmanchar o mundo? O que as minhas mãos espalmadas, espantadas de si mesmas, ainda guardam? Sobrou alguma coisa depois de todas as despedidas não declaradas e as desilusões e as renúncias e as covardias e as distâncias? Ficou alguma coisa mais palpável que o (enorme) catálogo de manias e a tracklist de músicas com nomes de amigos e lugares bem marcados no tempo? Ou terá sido tudo uma grande trapaça e eu nunca estive aqui? O que será que eu procuro (o que eu encontro) em tantas selfies escondidas e meticulosamente catalogadas? Dizem alguma coisa essas figuras esboçadas no papel com tanto desprendimento? Por que, por que jogar a âncora das palavras exige um esforço cada vez maior? Por que o que antes era riso e desatino e iluminação agora é luta, xadrez, corda bamba? O que é que teima em me afastar? O que me faz querer ficar?

Queria poder dizer que morri umas tantas vezes,

31/12/2020
by

daquele jeito desesperado que estampa os poemas e as canções populares, mas foi só ausência, mesmo. Talvez algumas ausências calculadas, bem (mal) dosadas, outras ausências forçadas, e até as ausências de puro pânico. Tantas ausências que, veja só, acabei explodindo (ou implodindo?). De qualquer modo, sem um pingo de poesia, sequer um trago de conhaque para justificar. E quem eu poderia enganar, afinal? Não sei se por necessidade, impertinência ou falta de ânimo, me lancei a uma espécie de auto-arqueologia, revirando aqui e ali alguns ossos incompreensíveis (mas em perfeito estado de conservação, nessas circunstâncias). Não sei se com eles me remonto ou se me coloco à exposição pública. Eis o que consegui reunir até agora (manuseie com cuidado, mas sem muita reverência):

TEMPO – o tempo que define, o tempo que se ausenta, o tempo que equilibra, o tempo que eclipsa, o tempo que amedronta, o tempo que esmaga, o tempo que esvazia, o tempo que cobra, o tempo que perdoa, o tempo que engendra, o tempo que refaz.

ESPELHO – o espelho que pergunta, o espelho que afronta, o espelho que lembra, o espelho-esfinge, o espelho vazio.

MÚSICA – a música que silencia, a música que machuca, a música que reconstrói, a música que traduz, a música que revela, a música que adia, a música que tapeia, a música-alarme, a música que abre janelas e acende o sol, a música que rebela, a música que absolve, a música que desabafa, a música que gasta, a música-histeria, a música-identidade, a música-entidade, a música que se precisa cantar.

PALAVRAS – as palavras não ditas, as palavras esquecidas, as palavras assombradas, as palavras ridículas, as palavras-acidentes, as palavras arrancadas, as palavras de amor torturado, as palavras doentes, as palavras-bóias, as palavras mágicas, as palavras brancas, as palavras-pipas, as palavras sem saída, as palavras sem credo, as palavras sem palavra.

AMIZADE – a amizade esgarçada, a amizade devorada no redemoinho dos medos e das solidões e dos cansaços, a amizade sobrevivente a todos os credos e ideologias e dores, a amizade confrontada, a amizade-âncora, a amizade-pássaro, a amizade-alicerce, a amizade platônica, a amizade que ensina, a amizade que engrandece, a amizade guardada como carta antiga em segredo porque é preciso lembrar, a amizade Dom Quixote.

MEDO – o medo de não ter mais tempo, o medo de não desbravar outros caminhos, o medo de ser um erro, o medo de não existir um motivo, o medo de não amar, o medo de não lembrar, o medo de perder a si mesmo, o medo de não ser suficiente, o medo de ser apenas suficiente, o medo de jamais fazer as pazes com as palavras, o medo de não saber falar, o medo de não se machucar, o medo de não ver, o medo de não estar aqui.

CORAGEM – a coragem de encarar o abismo e responder ao abismo, a coragem de reconhecer o que se perdeu e porque se perdeu, a coragem de pedir um colo, a coragem de não saber o que fazer, a coragem de duvidar de si mesmo, a coragem de dizer não, a coragem de abandonar e sobretudo de se abandonar, a coragem de se questionar com sinceridade sobre as próprias vontades, a coragem de ser gentil consigo mesmo, a coragem de erguer a voz, a coragem de ter uma voz, a coragem de não aceitar, a coragem de aceitar, a coragem de acertar.

O que eu guardei de você

04/02/2018
by

não ficou registrado em fotografias. Nenhuma imagem congelada de flor e montanha e lamparina e lambe-lambe na praça.

O que eu guardei de você não veio agarrado na sola dos sapatos, no bojo de passos ligeiros de dança e de medo. Nada que uns tantos copos ou as anedotas em que me escondia pudessem sedimentar.

O que eu guardei de você teve de ser roubado das pequenas pausas distraídas, aqui e ali. Fermentou com uma mistura de intenções e expectativas, a presença quase acidental. Menos que uma espuma, capaz de voar no primeiro sopro. Mas teimou em ser permanente, e agora cresce nas muitas palavras que não cabem.

O que eu guardei de você me devora, um riso que escapa e entorta o caminho. O que eu guardei de você é uma bomba-relógio.

Ainda não aprendi a voltar,

26/11/2017
by

e me assusta parecer uma criança diante da janela embaçada do seu quarto, pedindo socorro, porque há muito tempo deixei de fingir que já fui essa criança. Não, você deve entender de outra forma. Se existe alguma intenção aqui, é a de uma confissão, apenas, sem mea culpa.

Ainda não aprendi a voltar, é só. Sou incapaz de refazer a geografia inventada pelos meus passos entre uma fuga e outra, uma diversão aqui, uma aposta furada ali para gastar o tempo. O tempo de uma dança, e tudo continua a se desmanchar.

Ainda não aprendi a voltar, mas se tivesse um pouco mais de honestidade, deveria admitir que nunca foi uma opção. Nunca haveria para quem voltar. Tenho dedos tortos, leves demais, e eles só me desenharam retratos imprecisos, memórias de que só se pode desconfiar. Dedos que se imaginam segurando um cigarro enquanto a boca expira a fumaça impossível. Um truque, uma forma de me livrar sem maiores dores do que não soube reconhecer ou nomear. Como todos os outros truques. Poser.

Ainda não aprendi a voltar, e na verdade o que me frustra é não conseguir cometer mais nenhuma insensatez. Nenhuma carta de amor escrita para provocar – sempre haverá cartas de amor, não minhas. Nenhum telefonema no meio da tarde para falar de banalidades – uma única palavra poderia expor a fragilidade de qualquer sentimento. Não, não haverá uma porta aberta num rompante, uma cadeira onde eu esqueceria a bolsa – jamais a mala de viagem pronta para se extraviar.

Se eu te fizesse uma canção,

19/11/2017
by

com o cuidado de não abrir demais o peito já rasgado, nada muito exposto e embaraçoso. Se eu te fizesse uma partitura para o seu piano, com notas que apenas respingassem nas teclas com a profundidade das badaladas de um sino de igreja, nunca o alarme de uma cavalgada desenfreada e exuberante. Música para salão, cenografia para intenções insinuadas com elegância, jamais os clubes de sombras onde apenas se balança o corpo num ardor frenético. Talvez assim eu soasse mais sincera. Mais composta, com certeza, e razoavelmente mais civilizada. Quem sabe até pudesse me olhar de novo – e me convencer a te reencontrar – sem sustos, depois de tanto jogo de cena, tanta fuga disfarçada em allegro. Todo este silêncio quase irreparável.

No fim,

16/11/2017
by

eu sempre acabo naquele boteco malparado na esquina. E é sempre uma tarde de terça-feira com as ruas varridas de ouro e agonia. Sempre A Montanha Mágica no rádio com chiado, os alto-falantes na lateral da mesa de sinuca afrontando qualquer coisa estática. Eles sempre me anestesiam, aqueles versos definitivos, na semi-escuridão a salvo dos excessos lá de fora. A sua lembrança, como sempre, me alcança bem ali, infalível, mas sem desvios de rota ou o cansaço pelo caminho. Sempre nesse momento, exatamente nesse momento, eu torno a rabiscar numas folhas todos os antigos disparates pueris que agora me comovem e doem. Como se ainda não fosse urgente, nem necessário.

Eu sempre esqueço que é um ardil, um looping de tempo mal disfarçado em que me deixo apanhar, fingindo medo.