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Queria poder dizer que morri umas tantas vezes,

31/12/2020
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daquele jeito desesperado que estampa os poemas e as canções populares, mas foi só ausência, mesmo. Talvez algumas ausências calculadas, bem (mal) dosadas, outras ausências forçadas, e até as ausências de puro pânico. Tantas ausências que, veja só, acabei explodindo (ou implodindo?). De qualquer modo, sem um pingo de poesia, sequer um trago de conhaque para justificar. E quem eu poderia enganar, afinal? Não sei se por necessidade, impertinência ou falta de ânimo, me lancei a uma espécie de auto-arqueologia, revirando aqui e ali alguns ossos incompreensíveis (mas em perfeito estado de conservação, nessas circunstâncias). Não sei se com eles me remonto ou se me coloco à exposição pública. Eis o que consegui reunir até agora (manuseie com cuidado, mas sem muita reverência):

TEMPO – o tempo que define, o tempo que se ausenta, o tempo que equilibra, o tempo que eclipsa, o tempo que amedronta, o tempo que esmaga, o tempo que esvazia, o tempo que cobra, o tempo que perdoa, o tempo que engendra, o tempo que refaz.

ESPELHO – o espelho que pergunta, o espelho que afronta, o espelho que lembra, o espelho-esfinge, o espelho vazio.

MÚSICA – a música que silencia, a música que machuca, a música que reconstrói, a música que traduz, a música que revela, a música que adia, a música que tapeia, a música-alarme, a música que abre janelas e acende o sol, a música que rebela, a música que absolve, a música que desabafa, a música que gasta, a música-histeria, a música-identidade, a música-entidade, a música que se precisa cantar.

PALAVRAS – as palavras não ditas, as palavras esquecidas, as palavras assombradas, as palavras ridículas, as palavras-acidentes, as palavras arrancadas, as palavras de amor torturado, as palavras doentes, as palavras-bóias, as palavras mágicas, as palavras brancas, as palavras-pipas, as palavras sem saída, as palavras sem credo, as palavras sem palavra.

AMIZADE – a amizade esgarçada, a amizade devorada no redemoinho dos medos e das solidões e dos cansaços, a amizade sobrevivente a todos os credos e ideologias e dores, a amizade confrontada, a amizade-âncora, a amizade-pássaro, a amizade-alicerce, a amizade platônica, a amizade que ensina, a amizade que engrandece, a amizade guardada como carta antiga em segredo porque é preciso lembrar, a amizade Dom Quixote.

MEDO – o medo de não ter mais tempo, o medo de não desbravar outros caminhos, o medo de ser um erro, o medo de não existir um motivo, o medo de não amar, o medo de não lembrar, o medo de perder a si mesmo, o medo de não ser suficiente, o medo de ser apenas suficiente, o medo de jamais fazer as pazes com as palavras, o medo de não saber falar, o medo de não se machucar, o medo de não ver, o medo de não estar aqui.

CORAGEM – a coragem de encarar o abismo e responder ao abismo, a coragem de reconhecer o que se perdeu e porque se perdeu, a coragem de pedir um colo, a coragem de não saber o que fazer, a coragem de duvidar de si mesmo, a coragem de dizer não, a coragem de abandonar e sobretudo de se abandonar, a coragem de se questionar com sinceridade sobre as próprias vontades, a coragem de ser gentil consigo mesmo, a coragem de erguer a voz, a coragem de ter uma voz, a coragem de não aceitar, a coragem de aceitar, a coragem de acertar.

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